segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

...Os lembrados esmaecem limites...

A história pode ser definida como “um corpo de fatos verificados” (E.H Carr). Ela é ainda necessariamente escrita a partir de posições do presente, cada geração tem sua própria visão do processo histórico, por isso frequentemente a reconstruímos, lançamos novos olhares, revisitamos bibliografias e documentos. Esse constante trabalho historiográfico constrói a identidade coletiva e ela pode ter a memória como elemento essencial, com toda liberdade e possibilidades criativas que lhe são peculiares. A memória carrega consigo a narrativa, o esforço em fazer surgir o que estava imerso. É subjetiva, parcial, traz cheiros, sabores, imagens, perpassa o material. “Os acontecimentos vividos carregam consigo a finitude, ao passo que os acontecimentos lembrados esmaecem limites” (W. Benjamim)


E num emaranhado de memórias relembradas no auditório da escola eu conheci meu pai menino. Não o homem grande, forte e sério que me acostumei ao longo dos meus 30 anos, mas um garoto, que em meio às paredes do Colégio Batista Daniel de La Touche voltou a ser a criança de anos antes. O portão verde, o muro alto, a quadra que virou ginásio, o prédio que ganhou mais um andar, as grades que não existiam. Assim, ele, 35 alunos e sete professores me contaram suas lembranças. Meu pai me deixou entrar na memória dele, em suas saudosas e carinhosas recordações. O orgulho da escola, dos amigos e de tudo que recebera ali fez com que ele me levasse numa viagem de 2 mil km e por uns 50 anos de história, ou mais, talvez.
Ao vê-lo entrar pelo portão, assisti um sorriso infantil, de tantos que reconheço nele, um que nunca tinha visto. Ao rever os amigos a euforia foi coletiva, eram jovens de novo. Invertemos o papel, a duras penas consegui algum resquício de ordem em meio à erupção de sentimentos. Bagunçaram, falaram alto, contaram piadas e histórias. 40 anos depois o professor de genética descobriria enfim quem lhe dera o apelido.O carinho do gentil professor de educação física que se emocionou e agradeceu em ter uma sala recheada de pessoas que ele ensinou, que era o maior presente que poderia receber. No auge de seus 87 anos, o diretor que lembrou o papel educacional da família e da escola e estampou o orgulho em olhar para a turma de 1976. Uma turma especial, que formou, na fala de seus tutores, mais que grandes profissionais, grandes homens e mulheres.
Naqueles discursos eu me emocionei, estudei a muitos km de distancia, mas ali eu assisti uma parte da minha história, eu vi quem formou o meu pai. Em um discurso inflamado e tomado de paixão, o agora procurador, na época o jogador orgulhoso do time campeão de futsal Zé Cláudio, falou do respeito aos professores, valores, das amizades, emprestando-se de grandes escritores brasileiros emocionou e lembrou com uma ponta de tristeza dos amigos que partiram cedo demais, ali dissemos “presente”.
Meu pai faz parte dos que se distanciaram geograficamente, mas provo que a memória e o coração ficaram em São Luiz. Ouvi sobre o basquete, sobre as puladas de muro, as descidas a secretaria, até os picolés. Até o hino do Batista eu conheci, em encontros etílicos dos maranhenses, até choravam, saudade do estado querido e um pouco do efeito do álcool também. Alguns nomes fizeram parte da minha infância. Pude dar rostos ainda menina, outros só no encontro. Ouvi do amigo que se ele tivesse que escolher uma só pessoa do grupo, a melhor pessoa, ele escolheria o meu pai. “Seu pai foi meu primeiro amigo no Batista, ele me acolheu, sempre foi assim, eduicado e corretíssimo, me emociono ao falar dele”. Os olhos dele encheram de lágrimas, os meus também, e não pude dizer que o nome dele sempre me foi falado com muito carinho, desde criança ouvi o nome Elias Haichel por aqui.
E veio o acaso ao descobrir que memórias e caminhos entrelaçados chegaram aos bancos da Universidade de Brasília, e me colocam na mesma disciplina do filho da Ana Lília, a amiga de escola do meu pai. Assim, revisitei eu as memórias, revisei as teorias, busquei o arcabouço teórico historiográfico para escrever a importância da memória, a deles, da turma de 1976 e da minha. Meu pai me ensinou a importância da educação, foi no Colégio Batista que aprendeu sobre o valor do conhecimento e se tornou a pessoa mais íntegra e ética que conheço. Me senti honrada, e orgulhosa, em poder descobrir meu pai menino.
Acontecimentos são espumas, o que interessa ao fim são as mudanças culturais geradas a partir deles, a história se constrói muito além de fatos. Parabéns e obrigada turma de 1976, são muito mais que 40 anos de história, os senhores esmaeceram os limites.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito lindo e gratificante esse seu texto Tá ti. Afinal são momentos como esses que devem ser relembrados.de uma forma carinhosa como vc colocou.reconhecer a pessoa adormecida através de outras pessoas e maravilhoso e vc fez isso através de belas palavras e depoimentos ao vivo valeu.

Anônimo disse...

Tatiana, estou profundamente orgulhosa da filha do meu colega e amigo de infância e adolescentcia, pela habilidade de, usando as palavras ser tão fiel as nossas lembranças e traduzir com tanta precisão e intensidade aquilo que não se vê, mas que transcende a convivência. Tua capacidade de emocionar é impar. Orgulho de saber que as vidas de nossos descendentes se cruzaram em um banco de universidade a 2.500 km de onde vivemos nossa vida escolar, orgulhosa de saber que primamos em passar para
nossos filhos, valores cultivados e que permanecem, orgulhosa de descobrir que tens uma hiper mega sensibilidade capaz de captar, perceber, experimentar e registrar momentos que nao viveste como se lá estivesses. Isso é um DOM! Simplesmente, encantada! Parabéns, discreto amigo Rudival. Fizeste um excelente trabalho. Tens uma obra preciosa como resultado de tua essência e dedicação. Ana Lilia