quarta-feira, 28 de junho de 2017

Um dia eu me afoguei

Foto: Katie Joy Crawford

Um dia eu me afoguei. Não foi como quando se aprende a nadar e engole um pouco de água, foi a sensação de ter uma parte importante se esvaindo, de não mais ser capaz de controlar o próprio corpo, não mais era dona da minha respiração. Não me afundei em uma piscina, tão pouco em águas abertas, me perdi em ansiedade, deixei que ela me dominasse a ponto de não mais conseguir emergir sozinha. Assim dei entrada no hospital, depois de um quase dois dias sem comer, vomitando tudo que eu não mais era capaz de aceitar ou digerir. Não era fisiológico, o quadro: transtorno de ansiedade. Minha mente tinha vencido o corpo.

Uma série americana chamada Suits me fez um enorme favor e representou em detalhes os meus ataques de pânico. O personagem principal, o poderoso advogado Harvey Specter, no início de uma das temporadas, sofre uma crise de ansiedade, passa a dormir mal, tem pesadelos recorrentes e episódios de pânico que o fazem ficar tonto, enjoado e vomitar. Me vi ali, em detalhes, até as broncas da terapeuta eram as mesmas. Sim, até o mais poderoso dos advogados pode ter transtorno de ansiedade. Ficou mais fácil explicar o que eu tive e entender que o problema era, e é, uma questão de saúde pública, não só meu.

Aprendi uma metáfora bastante elucidativa com um dos grandes profissionais que conheci, exemplifica perfeitamente o que é a ansiedade. Ela não é vilã, pelo contrário, ela nos é útil, nos deixa alerta, com sistema sensorial mais apurado. Veja a cena: noite, escuro, um beco, você está sozinho e vem dois homens com facas; sua ansiedade é bastante necessária, perigo iminente. Mas precisa estar funcionando bem. Pense no alarme de um carro, ele é feito para disparar em situações adversas, de risco, mas se passa a disparar quando um passarinho canta, está claramente desregulado.  Eis o transtorno, a ansiedade fora de controle.

Muito mais que entender tudo isso é admitir que assim como não há osso que não quebre a uma determinada tensão, também não há mente que não rache a determinados níveis de stress. Mas aprendemos a ignorar os sinais do corpo, eu aprendi pelo menos, porque eu precisava ser invencível, não importasse a adversidade. Abri o peito para tudo, sem muita defesa, até punção para checar um tumor na mama eu fui fazer sozinha, afinal o problema era meu, eu tinha que resolver, mais ninguém precisava ser envolvido. E fui assim a vida toda, carreguei todas as minhas pedras e cruzes sem pedir apoio, mesmo que o suporte estivesse pronto pra mim.

Com ego destroçado e moral no chão eu me fechei em um micromundo e quando uma semana depois eu finalmente recebi alta eu não tinha certeza se queria ver o mundo, se queria voltar à realidade. Ali, paralisada de medo naquele corredor, pensando que nunca mais eu iria me recuperar, nunca mais seria forte de novo. Me vi com cinco quilos a menos, alguns hematomas de veias estouradas e aboluto pavor de dormir. De lá direto pro consultório da psicológa, admiti que sozinha seria impossóvel.

Venci meus preconceitose encarei a sala de espera de um psiquiatra, mal sabia o quanto eu ia aprender naquela sala. Precisei aceitar quando ele disse que eu precisaria de remédios. Admitir que logo eu, que nem alcool bebo, ia precisar de drogas para dormir e para acordar. Mas a hora de dormir tinha virado um pesadelo, era disparada a pior hora do dia, a condição me fez aceitar. E com toda a calma que lhe foi peculiar, ele me explicou que era um perfil que precisava de alterações, minha força ainda estava no mesmo lugar, por mais que eu duvidasse bastante.

Nunca soube ser meio, sempre fui pro enfrentamento, tudo ou nada em todas as situações. Nunca fui boa em confiar nas pessoas, não confiar me protegia, ou essa era a minha lógica. A verdade é que tentei responder por mim e pelos outros o tempo todo, me decepcionei incontadas as vezes e ignorei todas elas. Errar nunca me foi permitido, eu nunca aceitei. A necessidade de controle e de informação se tornaram profissão, prever variáveis, planejar. Construí um muro bastante alto ao meu redor, fiz uma fortaleza em mim, até que ela foi ruindo, porque ser ilha é uma ilusão. E ninguém quer falar que quebrou, ninguém quer ser vulnerável, eu não queria.

Dedici retomar o meu controle, olhar pra dentro em vez de culpar o Universo. Reconheci minhas falhas, fui eu que me coloquei naquele hospital. Parei de fugir, vivi meus conflitos, encarei meus demônios, magoeei algumas pessoas pelo caminho, mas era uma trajetória que eu precisava atravessar. Recebi muito conforto, nem sabia que tanta gente se importava comigo e essa parte é algo que não se esquece, cada mensagem, cada ligação, cada visita. Lembro em detalhes do dia que consegui voltar ao trabalho e a crise de choro na entrada do prédio, um misto de alívio e pavor.


Ironia ou não, de tanto querer controlar tudo, eu perdi o controle. De tanto me forçar a ser sozinha, precisei de um monte de gente. Eu deixei a água da ansiedade subir, mas também fui eu quem fez ela descer. Tive uma rede de excelentes profissionais ao meu redor. A proteção que eu achava tão capaz de me prover veio de fora. Me achei de volta no meu mundo, reconstruí meu mundo. Um ano e meio depois, já livre dos remédios, com alta, entendo o quanto o processo foi doloroso, é verdade, mas absolutamente necessário. Fiz as pazes com a coragem, achei força pra não mais submergir. Me despi de muito preconceitos, me livrei de peso que eu carregava sem precisar. Me fiz leve. Um dia eu desafoguei. 

terça-feira, 27 de junho de 2017

Nasci sozinha

Nasci sozinha, logo preciso me virar sozinha. Essa sempre foi a minha lógica, um pragmatismo maior que eu. Esperar de forma alguma, sou fazedora, aguardar é ser passivo e paciente e paciência eu vim até sem pra essa vida. Chorar vai resolver? Não. Gritar vai resolver? Não. Então, para, respira, se movimente e por favor não choraminga.
Nasci filha única, em uma família que a independência é muito importante. Da minha mãe eu ouvi a vida inteira "case primeiro com o seu trabalho". Meu pai sempre deixou muito claro que a preocupação era com a minha educação. Casamento e firulas nunca foram temas recorrentes. O médio nunca foi tolerado. Minha dose de mimo de única criança veio do meu avô, esse sim fazia um bocado das minhas vontades, mas lá em casa o bicho pegava. 
Democracia nunca foi bem o regime da casa, apesar de pedagoga, minha mãe preferia Pinochet a Piaget. O que não me impedia desde muito cedo demonstrar minha personalidade turrona, respondona e briguenta. Mas ela contornava, dava a última palavra, "adoro ser chata", e fim. Até hoje não tenho nenhum problema em lidar com conflito, a arte da argumentação eu aprendi foi no berço.
Meu pai gritou comigo uma vez só, mas lembro sem saudade e sei muito bem quem foi a culpada. Os meus olhares tortos vem desse lado do DNA, bastante fácil reconhecer os descontentamentos dele. As perguntas respondidas me mandando procurar no jornal ou achar o dicionário me irritavam profundamente, mas me fizeram bastante diferença na faculdade.
Fui criada pra ser aquela mulher que "homem nenhum quer", como diziam os textos de revistas para moças. Não tem nada que eu não seja capaz de resolver sozinha, trabalho muito e gosto da minha rotina maluca, não sei depender. Sei mais palavrões que um estivador e os acho absolutamente libertadores e insubstituíveis. Não me sinto obrigada a manter a carinha de feliz em canto algum, muito menos de estar sempre acompanhada. Não sou para amarras. 
Mas aprendi, a duras penas, que não é porque posso fazer tudo sozinha que preciso ser um o tempo todo. Que pedir ajuda não é sinônimo de fraqueza. Que liderança é inata, mas não precisa ser onipresente. Nunca soube bem demonstrar que não queria ser um, a contar pelos meus incontados fracassos amorosos, quando algumas vezes eu me arrebentei de sofrer e anos depois escutei "mas você nunca me deixou chegar, eu não fazia ideia".

Entendi melhor sobre empatia, isso só se aprende vivendo, não tem livro que explique. Descobri há muito pouco tempo que vulnerabilidade não é exatamente nocivo. Nunca vou ser a mulherzinha, o estereótipo, nasci sozinha e até gosto bastante da minha individualidade, de ser vento. Mas só agora talvez eu saiba parar, respirar, me movimentar, e me deixar choramingar também, agora é permitido. Posso ser um em dois, em três ou com uma porção de gente, percebi que o caminho pode ser mais simples. Por favor, choramingue.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

É preciso coragem

Nessa minha vida de leituras aleatórias eu tenho reparado em como escrevemos mais com um coração partido, pelo menos eu escrevo mais, e a contar pelo comportamentos de alguns outros autores acho que posso afirmar minha impressão. É como se a dor pudesse ser amenizada ao transportar para o papel o que não cabe em si. No meio do sofrimento, quando parece que a água da ansiedade só sobe e brevemente vai nos afogar, quando tudo perde proporção e sentido, escrevemos. Mas é aí que reavaliamos, repensamos comportamentos, que sentimos o bichinho da mudança. Mas pouco conversamos sobre recomeços, porque mesmo com toda poética e infinitas possibilidades, reiniciar é absolutamente assustador.

Muitissimo mais fácil se manter no conforto de um lugar-comum, mesmo que aos pedaços e meio falido, porque colocar o pé pra fora e se jogar no novo, sem saber muito bem o que esperar, empurrar a porta é para os que tem muita coragem. Acho que todo mundo já enfrentou um tempinho a mais em uma relação fracassada por medo da solidão, ou até pelo menos estar pronto para encarar um salão sozinho de novo.

Eu já coloquei pontos finais algumas vezes, em outras colocaram o final por mim. Algumas histórias eu insistia em não querer terminar. Sempre fui de ficar, permanecer até que a última chance escorresse, porque aí eu ia embora de vez, mas ia com certeza de que pelo menos a minha parte eu tinha cumprido. Um jogo bastante sofrido, confesso, mas é o ônus da minha passionalidade.

Agora nesse negócio de recomeçar sempre engatinhei, levo muito tempo me livrando do antigo, criando novos espaços e me desfazendo da toda a tralha emocional. Passo por um imenso ritual e viro uma criatura bastante medrosa, gato escaldado com medo até de água fria mesmo, dessas que prefere não se arriscar e vai minando possibilidades porque a lembrança da ferida ainda é latente. Nenhum problema com o tempo, se não fosse perder um bocado de gente bacana estacionada no que passou.

Sempre morri de inveja do pessoal que tem um amor da vida por semana, que se apaixona perdidamente com duas trocas de olhares, faz juras de amor infinito, aí não da certo, termina, se acaba em lágrimas, diz que vai morrer e semana que vem se apaixona de novo. É muita coragem. Eu levo uma eternidade pra me apaixonar e acho que duas pra desapaixonar. Também invejo o pessoal que abandona carreira e muda tudo porque resolve que quer fazer outra coisa, viver em outra cidade, país ou sei lá virar monge. Invejo o desapego.


É preciso ousadia pra bater a porta sem olhar pra trás, mas é preciso ainda mais pra não voltar e abri-la, porque na hora da dúvida essa vontade de correr pro conhecido chega, as vezes chega forte. E vem o tempo para procurar novas portas por aí,  de saber a hora de pedir ajuda, de engolir o orgulho, de aprender a ouvir e mais que tudo se permitir mudar. Perdemos muito tempo sendo deterministas, eu perdi muito tempo assim, levando opiniões a ferro e fogo, me cobrando coerência e me engessando. A maturidade (e a terapia) me trouxe muito mais flexibilidade, somos muito menos caretas aos 30 que aos 20, como li outro dia. E sobre a solidão, eu sempre gostei muito da minha companhia, mas descobri que não preciso ser só um o tempo todo. Coragem mesmo é saber recomeçar, ando me encontrando com a minha, talvez até dando uns passinhos. Reiniciar é assustador, mas tem lá sua diversão também.