domingo, 24 de julho de 2011

Mito da criação das vozes

No princípio era o silêncio. Nada se escutava, nada produzia som. Quando Deus em sua infinita grandiosidade vagava pela escuridão profunda de um mundo ainda por fazer. E numa mistura de luz e energia o mundo foi criado e Deus colocou as mais diversas criaturas no paraíso recém formado pelo encontro harmonioso de elementos.

E veio o primeiro homem, Athos. Forte, viril e perfeito em sua criação, mas solitário. E Deus viu que era hora de criar a mulher, Isa, sensível, meticulosa e absolutamente perfeita em sua criação. Isa passeava ao sabor do vento, dedicava seus dias ao ouvir os sons que a natureza lhe concedia, não entendia o silêncio, não compreendia porque não era capaz de emitir canções como as que ouvia em suas andanças.

Um dia, o entardecer, quando o sol já se despedia com os últimos raios de luz, Isa ouviu a mais bela canção irromper por entre as árvores. Jamais escutara som tão hipnotizante, ficou ali, parada, sem conseguir identificar de onde vinha tão bela voz. Olhou ao redor, mas não pode ver quem seria capaz de produzir as notas tão afinadas.

No dia seguinte Isa foi ao local, escutou a mesma canção e mais uma vez não conseguiu identificar o cantor. Ao terceiro dia, Isa decidiu se esconder por detrás das folhagens e ali ficou até voltar a escutar a voz. E pela primeira vez conseguiu ver camuflado entre as folhagens um pequeno ser de olhos expressivos, grandes e pretos, e uma plumagem castanho avermelhado que a plenos pulmões entoava notas que Isa jamais tinha escutado. Era um Rouxinol, o cantor noturno da floresta.

Isa se apaixonou por aquele ser oculto e misterioso no instante que o viu. O pássaro que preferia o anoitecer ao amanhecer encantou a jovem. Todos os dias ia na mesma hora e no mesmo local encontrar o belo pássaro. Aos poucos o Rouxinol passou a confiar na mulher e se aproximar mais. Isa continuava a se martirizar por não poder emitir notas como as daquele tão pequenino ser, o rouxinol prometeu que ainda lhe daria o segredo.

Com o passar do tempo Athos começou a sentir falta de sua companheira, que dedicava muitas horas do dia na companhia do Rouxinol. A solidão lhe causava ira, não compreendia os sumiços de Isa, que lhe ocultara o motivo real de seus passeios. Um dia decidiu segui-la em sua andança ao fim da tarde, descobriu o pássaro e ficou enciumado da relação dos dois.

Athos consumido de ciume e raiva decidiu que aquela voz seria dele, não poderia pertencer a um ser tão pequeno e insignificante. Assim Isa não mais se agradaria da companhia do Rouxinol e voltaria a se encantar com as horas passadas ao lado de Athos.

Athos preparou então uma armadilha ao pássaro. No dia seguinte, um pouco antes do horário do encontro com Isa, o homem se escondeu por entre as folhagens. Ele sabia que Isa se atrasaria para o encontro, tinha se incumbido de desviar a atenção da mulher com novas frutas que encontrara no dia anterior. Quando o Rouxinol apareceu a procura de Isa, Athos avançou para cima dele em um sobressalto e o aprisionou. O pássaro soltou um grunhido alto que toda a floresta ouviu, Isa se assustou e correu na direção do encontro.

O homem prometeu matar Isa caso o Rouxinol não lhe desse sua a voz. Disse que a mulher já entraria no local e assim que chegasse seria flechada com o mais cruel e mortífero veneno. O pássaro assutado e tentando prometer sua amada prometeu a voz ao homem, suplicou que não matasse Isa.

Antes que o Rouxinol pudesse transferir sua voz para Athos, Isa chegou e vendo o amado aprisionado e os olhos furiosos de Athos ficou petrificada. Desesperada, ela avançou sobre Athos e um descuido acabou soltando o pássaro, ainda mais furioso ele aprisiona Isa e promete por sua própria vida que irá matá-la se não puder ser dono da bela voz. O rouxinol em desespero voa de volta para Athos. Isa suplica por sua vida e de seu amado, mas Athos é irredutível.

E nesse mesmo momento, momo uma estrela, o Rouxinol fica cheio de luz, de seus olhos negros saltam fagulhas de energia. Iluminada como o sol, ele se aproxima de Athos e pousa em sua cabeça, começam a sair os mais belos sons ouvidos e feixes de luz que vão iluminando o homem. Isa se desespera, ela sabe que seu amado não suportará tamanho esforço, com esforço ela consegue derrubar Athos.

A transferência estava quase no fim, não há mais reversão, em um ato de declaração de amor o Rouxinol passa os poucos sons restantes pousando na cabeça de Isa. Assim, ela recebe os últimos tons, mais agudos e os trinados mais belos da terra. O pássaro fraco e sem voz desfalece nas mão de Isa, que lamenta em canção o sofrimento do amado.

Athos se recupera do tombo e flecha seu objeto de inveja. O rouxinol está morto. Isa faz um registro agudo do sofrimento sentido, enquanto Athos canta grave a inveja do amor de Isa pelo rouxinol. Isa passaria todas as tardes de sua vida em canções de lamento pela morte do Roxinol que tanto amou. As mais belas canções agora seriam por ela dedicadas à lembrança do amor que lhe fora tirado pela ira e inveja de Athos.

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